VIGILÂNCIA SANITÁRIA: PROTEGE A SAÚDE HUMANA?

XAVIER, Josilda B. Lima M. Xavier[1]

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

No dia 23/06/2022, o site Brasil de Fato[2], publicou uma matéria jornalística, onde usou como destaque a seguinte afirmação: Senado aprova autofiscalização sanitária que pode deixar população exposta a doenças. A publicação estava se referindo a aprovação da Lei (PL) 1.293/2021, que atribui aos empresários da agropecuária / agronegócio a responsabilidade da autofiscalização, com o cumprimento de normas sanitárias, retirando do Estado (governos federal, estadual e municipal) o dever de verificar se os alimentos produzidos no país estão em condições adequadas para serem consumidos pela população brasileira.

O mais “estranho” desse evento ocorrido no Senado Federal brasileiro, é que, segundo Pajjola (2022), “O PL 1.293/2021 é de autoria do governo federal, que alega dificuldades financeiras para exercer a fiscalização” e que o texto que compõe a nova lei que permite a autofiscalização dos produtos da agropecuária/agronegócio (carnes, frutas, verduras, grãos etc.) “foi aprovado de forma terminativa, ou seja, sem passar pelo plenário e comissões técnicas. A aprovação foi feita apenas pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), composta majoritariamente por parlamentares ruralistas”.

Para entendermos o absurdo das ações do Governo e do Senado Federal ao elaborar um projeto de lei tão danoso para a saúde da população brasielira e aprovar a Lei (PL) 1.293/2021, precisamos responder à algumas perguntas:

> Qual o órgão responsável pela fiscalização das condições ideais da produção e consumo de alimentos no Brasil?

> O que é Vigilância Sanitária?

> É importante que os alimentos produzidos e vendidos sejam analisados/avaliados por técnicos especializados, independentes, vinculados ao Ministério e Secretarias de Saúde?

Neste texto, procuraremos abordar alguns aspectos e informações que a autora considera relevantes e que a população precisa ter acesso.

Em relação à resposta para a primeira pergunta, é importante destacar o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Na área de alimentos, a ANVISA “coordena, supervisiona e controla as atividades de registro, inspeção, fiscalização e controle de riscos, sendo responsável por estabelecer normas e padrões de qualidade e identidade a serem observados” (ANVISA, s/d). (Grifo nosso)

O objetivo é garantir a segurança e a qualidade de alimentos, incluindo bebidas, águas envasadas, ingredientes, matérias-primas, aditivos alimentares e coadjuvantes de tecnologia, materiais em contato com alimentos, contaminantes, resíduos de medicamentos veterinários, presença de microrganismos, rotulagem e inovações tecnológicas em produtos da área de alimentos (ANVISA, s/d). (Grifo nosso)

Sobre os aspectos que estão relacionados com a segurança e qualidade de alimentos, é importante destacar o uso de “hormônios, de antimicrobianos, de antiparasitários que deixam resíduos nas carnes, ovos, leite e outros alimentos que consumimos”, apontados por Janus Pablo, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (ANFFA). Ele, também destaca que a aprovação da Lei (PL) 1.293/2021, é uma “ameaça à segurança alimentar do país e compromete a qualidade dos alimentos ao transferir a terceiros a responsabilidade pela fiscalização, por exemplo, do manuseio da carne em frigoríficos” (PAJJOLA, 2022), bem como em feiras livres; venda de pescados, de aves, de suínos; produção e venda de frutas, legumes e verduras; de cerais e grãos etc. (Grifo nosso)

Diante da imposição de uma lei, aprovada sem qualquer discussão com a sociedade, nem mesmo em plenário e comissões técnicas do Senado, e que beneficia “grandes empresários do agronegócio ao permitir a aprovação automática de registro para produtos com padrões normatizados e prever a contratação de especialistas da iniciativa privada para avaliar os casos” (PAJJOLA, 2022), é possível afirmar que:

1) Os empresários da agropecuária vão contratar especialistas que tenham total liberdade técnico-científica para impedir que seus produtos sejam liberados para o consumo?

2) A autofiscalização não terá vigência para os produtos que são exportados (vendidos para outros países), tendo validade apenas para o consumo interno, é plenamente justificada?

Sobre a segunda questão, “O que é vigilância sanitária?”, é necessário, também, termos ciência que a aprovação da Lei (PL) 1.293/2021, que Dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos aplicados pela defesa agropecuária aos agentes das cadeias produtivas do setor agropecuário; institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária, a Comissão Especial de Recursos de Defesa Agropecuária e o Programa de Vigilância em Defesa Agropecuária para Fronteiras Internacionais (Vigifronteiras); altera as Leis nºs 13.996, de 5 de maio de 2020, 9.972, de 25 de maio de 2000, e 8.171, de 17 de janeiro de 1991; e revoga dispositivos dos Decretos-Leis nºs 467, de 13 de fevereiro de 1969, e 917, de 8 de outubro de 1969, e das Leis nºs 6.198, de 26 de dezembro de 1974, 6.446, de 5 de outubro de 1977, 6.894, de 16 de dezembro de 1980, 7.678, de 8 de novembro de 1988, 7.889, de 23 de novembro de 1989, 8.918, de 14 de julho de 1994, 9.972, de 25 de maio de 2000, 10.711, de 5 de agosto de 2003, e 10.831, de 23 de dezembro de 2003”. (SENADO FEDERAL, 2022) (Grifo nosso), aprovada na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), pronta para entrar em vigor, se não houver interposição de recurso, está promovendo um retrocesso nos avanços e conquistas em relação às estratégias adotadas para a saúde familiar, a partir da Carta de Ottawa de 1996 que

definiu que a promoção da saúde consiste em proporcionar aos povos os meios para melhorarem sua situação sanitária e exercerem maior controle sobre a mesma. Para promover a saúde, a estratégia indicada inclui as políticas públicas saudáveis, o fortalecimento das ações comunitárias, a criação de ambientes saudáveis, o desenvolvimento adequado das habilidades pessoais e a reorientação dos serviços de saúde”. (MOUTINHO; CAMPOS; JESUS, 2012). (Grifo nosso)

A Lei (PL) 1.293/2021, RETIRA DA POPULAÇÃO, seu direito de saber o nível de qualidade dos alimentos que estão sendo produzidos e colocados à venda (frigoríficos, supermercados, feiras livres, açougues etc.), indo, inclusive, contra o “Código de Defesa do Consumidor [que] inclui entre os direitos básicos do consumidor em relação a produtos e serviços: a proteção da saúde e a segurança contra os riscos existentes, a educação e divulgação sobre o consumo adequado e a informação adequada e clara sobre os mesmos” (BRASIL, 1990). (Grifo nosso)

A Vigilância Sanitária está inserida em um sistema complexo que envolve a Saúde Pública, a partir da complexidade da organização social e o avanço, cada vez maior, das forças produtivas. Sobre essa questão, Ediná Alves Costa, em seu livro "Vigilância Sanitária: proteção e defesa da saúde" (1999), caracteriza a Vigilância Sanitária como “indissociável do conjunto das ações de saúde, situado no espaço mediador entre a produção de bens e serviços e a saúde da coletividade” (DALLARI, 2000).

Desse modo, como é possível o Senado (representação do povo) aprovar uma lei que retira da sociedade o direito à garantia de ter acesso a alimentos de origem animal ou vegetal com qualidade e livres de substâncias nocivas à saúde humana, garantido por um corpo técnico-científico, independente, diretamente vinculado ao sistema de saúde do Estado (Ministério/Secretarias da Saúde, ANVISA, SUS etc.)?

“A senadora Zenaide Maia (Pros-RN), que votou contra o projeto de Lei (PL) 1.293/2021, classificou a iniciativa como "omissão estatal". "Os produtos que vão ser exportados vão ter vigilância. Você que compra carne aqui no Brasil, no seu açougue, cuidado que não vai ter fiscal. O Estado não vai estar presente para dizer se tem brucelose, tuberculose", afirmou à Agência Senado” (PAJELLO, 2022). (grifo nosso)

A representante do legislativo no Senado, deixa claro que a sociedade brasileira, com a entrada em vigor da Lei (PL) 1.293/2021, está totalmente vulnerável e refém da “boa vontade” dos grandes empresários, latifundiários e exportadores que atuam na agropecuária/agronegócio brasileiro.

Sobre a Vigilância Sanitária para os produtos exportados, países importadores de produtos alimentícios oriundos do Brasil (Europa, Eurásia etc.), mantém exigências sanitárias rígidas, determinando às empresas exportadoras brasileiras uma atenção e cuidado, para atenderem às condições impostas pelos governos dos diversos países, com o objetivo de manter um alto nível de qualidade dos produtos a serem exportados. Sem isso, certamente, as exportações seriam suspensas, como já ocorreu por diversas vezes, como por exemplo quando

O Serviço Federal de Vigilância Sanitária e Veterinária da Rússia anunciou controles mais rígidos para os produtos oriundos da companhia e também dos brasileiros Frigo Estrela, Aurora e Frigon - Irmãos Gonçalves. Além disso, a Rússia anunciou a suspensão temporária das importações de carne bovina do frigorífico Mataboi, citando substâncias fora do padrão sanitário do controle adotado pelo país”. (GLOBO RURAL, 2017)

Considerando a advertência da senadora Zenaide Maia (Pros-RN), sobre doenças que podem ser transmitidas de animais para humanos, como a brucelose e tuberculose bovina (PAJELLO, 2022), é preciso conhecer quais as doenças que podem ser transmitidas por animais que são criados e abatidos para o consumo humano, se não houver o atendimento às normas exigidas pela Vigilância Sanitária de Alimentos, tais como: vacinação, higiene do local de criação e abate, uso de hormônios e antibióticos etc.

Eis algumas doenças que podem afetar animais que são criados para consumo humano:

Encefalopatia espongiforme bovina, conhecida como “doença da vaca louca”, é uma “doença degenerativa do sistema nervoso bovino, causada pela presença de proteínas infecciosas (príons); causa degeneração progressiva do sistema nervoso e apresenta sintomas como a falta de coordenação motora, entre outros. No fim, os indivíduos afetados morrem devido à doença. A causa mais aceita pela comunidade científica é que o consumo de alimentos feitos com farinha de carne (carne em pó) e ossos de animais mortos sob várias circunstâncias, incluindo alguns que sofriam de doenças degenerativas do sistema nervoso (por exemplo, ovelhas com paraplexia enzoótica), tenha causado a doença. A erradicação da doença exige a eliminação da proteína animal de alimentos dados a herbívoros. (SEUBERLICH, 2014; WHO, 2013 In: ÉTICA ANIMAL, s/d)

Febre aftosa, altamente contagiosa entre os animais, causada por um vírus que afeta porcos, vacas, ovelhas e cabras. Não costuma afetar humanos, exceto em alguns casos extraordinários em que os infectados estiveram em contato muito próximo com o vírus. O agente etiológico da febre aftosa é um vírus da família Picornaviridae, gênero Aphthovírus. (MURAGA et all, 2012, In: ÉTICA AMBIENTAL S/D; ADAGRI, 2008).

Gripe aviária, também chamada de gripe do frango, é uma doença altamente infecciosa entre aves, causada pelo vírus da gripe. A doença causa altos índices de mortalidade entre as aves, que, após o processo de incubação de aproximadamente dois dias, podem morrer em três a cinco dias. Quando infecta humanos, os sintomas podem ser confundidos com os da gripe comum, apesar dos casos mais severos poderem causar problemas respiratórios e pneumonia. (TENPENNY, 2006, In: ÉTICA AMBIENTAL, s/d)

Tuberculose bovina é uma doença causada por bactérias do tipo Mycobacterium bovis que afeta, principalmente, bovinos e búfalos. Ela se torna crônica nos animais e é transmissível para o homem. Nos bovinos, a doença causa lesões em diversos órgãos e tecidos, como pulmões, fígado, baço e até nas carcaças. (...) No homem, a maioria dos casos ocorre em jovens e resulta da ingestão ou manipulação de leite contaminado. Os trabalhadores rurais podem se infectar inalando perdigotos (aerossóis) de bovinos infectados, desenvolvendo a tuberculose pulmonar. (SOUZA, 2021; EMBRAPA, 2014)

Brucelose bovina é uma enfermidade infectocontagiosa, provocada por bactérias do gênero Brucella, principalmente pela Brucella abortus. Produz infecção característica nos animais, podendo infectar o homem. Sendo uma zoonose de distribuição mundial, acarretando problemas sanitários sérios e importantes, podendo causar também prejuízos econômicos (POESTER, 2013). (...) No homem, a sua manifestação clínica é responsável por incapacidade parcial ou total para o trabalho (BRASIL, 2006). (CARDOSO, 2016)

Diante do apresentado até aqui, é possível responder à terceira pergunta que fizemos na apresentação da informação e reflexão expostas neste texto:

É importante que os alimentos produzidos e vendidos sejam analisados/avaliados por técnicos especializados, independentes, vinculados ao Ministério e Secretarias de Saúde?

Costa; Rozenfeld (2000) destacam que

A Vigilância Sanitária é a forma mais complexa de existência da Saúde Pública, pois suas ações, de natureza eminentemente preventiva, perpassam todas as práticas médico-sanitárias: promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde. A Vigilância Sanitária atua sobre fatores de risco associados a produtos, insumos e serviços relacionados com a saúde, com o ambiente e o ambiente de trabalho, com a circulação internacional de transportes, cargas e pessoas. Os saberes e práticas da Vigilância Sanitária se situam num campo de convergência de várias disciplinas e áreas do conhecimento humano, tais como química, farmacologia, epidemiologia, engenharia civil, sociologia política, direito, economia política, administração pública, planejamento e gerência, biossegurança, bioética e outras. De todas essas disciplinas e áreas a Vigilância Sanitária se alimenta e se beneficia, no sentido de ganhar mais eficácia”. (Grifo nosso)

A complexidade e importância que as ações da Vigilância Sanitária têm para com as questões de saúde humana, animal e socioambientais, nos impõe lembrar que

Entre os fatores que reduzem a efetividade das ações de controle sanitário são citados, com frequência: atribuições pouco definidas das instâncias de governo; abordagem fragmentada do campo de atuação; pouca articulação intra e interinstitucional; insuficiência de recursos humanos; baixa qualificação técnica dos profissionais; sistema de informações insuficiente, além de despreparo para utilização dos dados existentes; interferência político-partidária; falta de apoio político, assim como desmobilização e desinformação da sociedade. (REIS; LIMA, 2002, In: PIOVESAN et al, 2005), e interferência direta do executivo que beneficia o agronegócio. (Grifo nosso)

Considerando os aspectos destacados pelos autores acima, bem como o fato de que em nosso país a formação de alguns milhares de profissionais nas áreas de conhecimento que atendem às especificidades do sistema de Vigilância Sanitária (Ciências Biológicas, Química, Farmacologia, Engenharias, Sociologia, Direito, Economia, Biossegurança etc.), que podem ser contratados pelo Estado, via concurso público, em nível Federal, Estadual ou Municipal, de modo a exercerem com independência e competência técnica-científica a vital função de defensores da Saúde Pública; portanto, NADA JUSTIFICA que o dever político-social do Estado seja repassado para agentes privados, diretamente vinculados ao agronegócio / agropecuária, interessados na liberação de seus produtos alimentícios, para serem autochancelados e comercializados como “próprios” para consumo.

Diante do exposto, é razoável afirmar que SIM, só a existência de uma Vigilância Sanitária, vinculada ao Ministério e Secretarias de Saúde, composta por profissionais com competência técnica -científica e independentes, pode garantir a proteção da SAÚDE HUMANA e SOCIAMBIENTAL.

[1] Docente da Universidade do Estado da Bahia, no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas / DEDC / Campus VIII. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0838920937933125

[2] Brasil de Fato - https://www.brasildefato.com.br/2022/06/23/senado-aprova-autofiscalizacao-sanitaria-que-pode-deixar-populacao-exposta-a-doencas. Publicado em 23/06/2022.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.e-legis.anvisa.gov.br/

CARDOSO, Caroline Alves Dias. Brucelose bovina. / Caroline Alves Dias Cardoso. -- Barretos, 2016. Orientação: Prof.ª Dra. Sandra Possebon Gatti. Trabalho de conclusão de curso – Instituto Federal de São Paulo – Campus Barretos, 2016. Disponível em: https://brt.ifsp.edu.br/phocadownload/userupload/213354/IFMAP160006%20BRUCELOSE%20BOVINA.pdf

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